PRÓLOGO
Estava ali de pé, em tronco nu. Completamente hirto. Pediram-lhe que olhasse para a objetiva da máquina fotográfica. O clarão obrigou-o a fechar os olhos.
Ainda há hora e meia, Franz Schmitt estava sozinho no túnel. Atravessou o longo e estreito corredor, os sapatos a escorregar pelos carris molhados. Pouco ar havia, como se a ventilação não funcionasse de maneira nenhuma. Por sorte, não tinha lá ido para minerar, mas apenas limpar os detritos de um pequeno desabamento do teto. Nada de grave se tinha passado: a viga superior tinha sido rapidamente reparada e tudo tinha ficado bem outra vez. Apenas tinha de limpar e reabrir o caminho. Durante uma hora, Franz carregou nove vagonetas com cascalho e o trabalho ficou feito. Não fosse por aquele corpo morto, poderia ter ido para casa mais cedo. No entanto, aquele fulano debaixo do entulho estava ali deitado e não se podia simplesmente fingir que não estava. O homem teria à volta de quarenta e cinco anos. Franz apanhou o seu corpo inerte pelas axilas e levantou-o, de modo a atirá-lo para dentro da vagoneta. E, de repente, ouviu um grito. Era ensurdecedor. Largou o corpo no chão e com os indicadores tapou os ouvidos. Não ajudou em nada. Talvez porque, na realidade, ninguém gritava naquele túnel. O recém-nascido estava ali deitado, imóvel, silencioso. As mãozinhas pequeninas apertadas uma na outra seriam encantadoras num outro contexto, mas cobertas de sangue tornavam-se aterrorizantes. No entanto, na cabeça de Schmitt a criança continuava a gritar, como as crianças normalmente gritam sempre que lhes falta alguma coisa, querem colo, querem beber, comer, dormir, têm frio, calor, querem a mãe, sentir a proximidade de outra pessoa, anseiam por uma demonstração de afeto, por carinho. Um bebé recém-nascido nu e abandonado num túnel frio, com certeza grita por ajuda.
Não gritava. Contudo, estava vivo. E parecia que nada lhe faltava.
Não faltava.
Aquela criança tinha nascido forte e tinha à sua frente um futuro brilhante.
Franz embrulhou-a na sua camisa e apertou-a com força contra si, para a aquecer. O fotógrafo regressou uma última vez para tirar mais uma foto, por via das dúvidas. Com o embrulho ao colo, Franz mirou a objetiva e, novamente, o clarão cegou-o. E o assunto ficou resolvido.
PRIMEIRA PARTE
PRIMAVERA
1. ERAM DOIS
Não havia dúvidas que Henry Robotham estava apaixonado por Angela Kurz. Fez o diagnóstico a partir dos seguintes sintomas: em primeiro lugar, não tinha olhos para nada mais no mundo além de Angela, em segundo, contava os minutos até que ela chegasse a cada um dos seus encontros e, em terceiro, emocionava-se demasiado. Em quarto, não era capaz de se concentrar e sentia-se um tanto ou quanto aparvalhado. O que seria o sintoma número…, como a concentração era difícil, ainda demorou algum tempo a contar mais uma vez. Era o quinto síndrome.
Por mais que se esforçasse por evitá-lo quando olhava para o rosto de Angela, e isso quer ela falasse quer estivesse em silêncio, via sempre a imagem de uma fada. Para ele, era esta a mais perfeita idealização de uma mulher: uma fada como a encarnação da beleza física e espiritual. Sabia que era embaraçoso e que a ela lhe pareceria ridículo, mas a ele fazia-lhe bem. Mesmo tendo apenas vinte e três anos, estava convencido de que nada de melhor lhe tinha acontecido na vida até agora, nem aconteceria. Também o dizia diversas vezes a Angela. Talvez demasiadas vezes.
“Tu és o melhor que me aconteceu na vida”, dizia a meia voz e beijava-lhe a mão. Na maior parte das vezes, à noite. Três vezes. Ou quatro vezes.
Já há um ano e meio que vivia do ensino como professor diplomado de música, basicamente a tocar piano e guitarra. Era de facto jovem e faltava-lhe paciência para o trabalho com crianças, mas por outro lado, porque era jovem, não andava numa pilha de nervos como os outros professores, de maneira que mesmo quando um estudante o irritava logo nos primeiros cinco minutos, não deixava transparecer a sua raiva. Guardava-a bem dentro de si e assim a conservava. Era bom nisso, fosse qual fosse a situação. Nunca deixava que nada transparecesse.
Angela também era professora. Recém-formada, oficialmente nunca tinha dado nenhuma aula, pois estava ainda a aproveitar as últimas férias antes da entrada na vida laboral. Para Henry, a Mulher Perfeita, um prémio da lotaria, nem aborrecida, nem excêntrica, mas na medida certa. E era assim que ele gostava. Tinha, porém, um certo receio de que ela o achasse enfadonho, mas talvez fosse por isso mesmo que ela estava com ele. Parecia-lhe querido e tinha sentido de humor, um tipo de humor esporádico que se revelava apenas de quando em quando, com o qual Henry lhe escondia o seu medo do desconhecido e que assim se tornava ainda mais surpreendente.
(…)
Saiu pela porta principal para as escadarias exteriores. Já lá estavam à espera. Schmitt e a enfermeira Elbe. O seu olhar foi atraído pelas sombras a desaparecer nos ladrilhos, mas ainda mais pelas nuvens suspensas e imóveis por cima do hotel.
“São tuas, Elbe?” perguntou a médica à jovem enfermeira das termas.
Elbe levantou os olhos para o céu e abanou a cabeça.
“Não. Eu… Não.”, defendeu-se algo atabalhoadamente, soando como se tivesse nove anos e tivesse de provar que realmente não tinha partido aquele vaso ao saltar à corda.
“Não são minhas”, soou por fim a sua resposta e, logo depois de falar, teve um sobressalto e voltou-se, como se tivesse a sensação de que alguém a observava.
“Hmmm” a médica bufou incrédula e voltou a mirar o céu.
“Vão para Ostrov, supostamente deviam ter sido trazidas pelo vento de leste, mas não havia vento nenhum” estranhou Schmidtt.
A médica levava a situação nos céus muito mais seriamente do que seria de esperar. Evidentemente, essa característica tinha ficado de fora da sua breve biografia na primeira página da brochura sobre o hotel Sklodowska. Apenas estava lá escrito: “Doutora Estela Hans filha, proprietária e gerente do hotel. O hotel foi construído entre os anos 1899 e 1901 e tinha originalmente o nome de Hotel Hans, tendo sido confiscado nos anos cinquenta no contexto do programa de nacionalizações. A mãe de Estela Hans, também ela médica, apenas recuperou o hotel no ano de 1990, depois da queda do regime comunista. Infelizmente, nesse mesmo ano, Estela Hans mãe faleceu e a sua filha assumiu em pleno o hotel. Mãe e filha, ambas médicas formadas, ambas dedicadas ao trabalho nas termas de radónio, ambas perseguidas pela polícia política. Depois da reconstrução do hotel, Estela escolheu o nome Sklodowska, para assim separar estes dois períodos históricos das termas da cidade de Jáchymov, interrompidos pelo totalitarismo e pela exploração devastadora de urânio para a União Soviética.” A brochura estava impressa em diversas versões linguísticas e tinha sido colocada na secretária de cada quarto, tal como numa pilha em cima do balcão da receção. Na última página, encontrava-se também uma foto que captava perfeitamente a beleza do jardim local e do seu coreto. Era difícil de acreditar, mas na realidade este jardim tinha sido ainda mais charmoso. Porém, não naquele momento. Todas as flores e arbustos ao longo do caminho pareciam agora bastante defuntos. Os caules não se curvavam naturalmente sob as flores, mas estavam deitados rentes ao chão, como se se quisessem esconder debaixo da terra.
“Por favor, Franz, o que fizeste com elas?” a médica acusou Schmitt.
“Não percebo, ontem estavam bem”, defendeu-se e levantou uma das flores com o dedo.
“Garantiste-me que eras capaz de fazer o teu trabalho.”
“Estela, eu reguei-as, a sério! Isto não é normal!” protestou.
Foi a primeira vez que a médica o questionava por causa da sua idade. Naturalmente, não mencionou explicitamente a idade, mas era evidente. Contou com o facto de ele a conhecer bem e assim saber que não o tinha dito por mal. Porém, um momento depois não parecia nada que não o tivesse dito por mal. A doutora Estela Hans fitava-o com antipatia, como se lhe tivesse aversão e nem sequer o reconhecesse. Sim, Schmitt tinha oitenta e nove anos, mas as rugas no seu rosto nunca antes tinham sido tão escuras e profundas como agora. Naqueles sulcos poder-se-ia facilmente segurar uma moeda. As rugas verticais no pescoço eram interrompidas perpendicularmente por uma cicatriz encarnada a toda a volta. Ele tocou no rosto e não afastou os olhos de uma Estela aterrorizada.
“Ai Jesus, porque é que me está a morder?” a enfermeira Elba soltou um grito súbito e atraiu a atenção da médica.
“Está a morder-me! Tenho de me livrar dele!” gritou novamente e fugiu a correr na direção da porta do hotel.
“Onde vais? Volta!” chamou a doutora.
Elbe atravessou o hall de entrada, escorregou nos ladrilhos e quase caiu, correu pelo parquet rangente do restaurante e irrompeu pela cozinha, através das portas de vai e vem com janela redonda. A médica seguiu-a. Os seus saltos altos ecoavam contra o chão. Empurrou resolutamente as portas da cozinha e viu Elbe a abrir uma garrafa de aguardente.
“Elbe, o que se passa contigo? Assim não dá, tolero a tua garrafinha e o cão, mas este comportamento já é demasiado!”
“Não viste? Ele mordeu-me!” defendeu-se Elbe.
“O cão?” disse a médica com sarcasmo.
“Sim!” atirou a enfermeira e bebeu.
Estela Hans tinha vontade de agarrar aquela rapariga pelo pescoço e abaná-la até que a garrafa lhe caísse das mãos. Apanhou a garrafa pelo gargalo e arrancou-lho da boca com tanta força que o líquido se entornou sobre ela. Irritada, apertou-lhe as bochechas com uma das mãos. E só então se apercebeu de que na mão de Elbe era realmente visível uma mordidela. No entanto, antes que pudesse dizer alguma coisa os seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho do arrastar de cadeiras, pelo ranger do parquet e ainda por outros sons, mais abafados, logo identificados como o soluçar das irmãs Mira e Mila, as duas gémeas com os seus lenços aos quadrados. A doutora largou o rosto de Elbe e espreitou pela janela redonda para o restaurante. Os reformados cuspiam bocados de bolo de sementes de papoila de volta para o prato e faziam caretas.
Mal se conseguiu desviar. As portas abriram-se de repente, entre elas estava o cozinheiro e, atrás dele, as gémeas em lágrimas.
“Eles têm razão, isto não se pode comer!” gritou. “Mas o que é isto? O que é quevocês fizeram com o bolo? O que é que lá puseram?” Não parou de gritar e cuspiu ao chão um pedaço daquele que tinha sido, até àquele momento, um majestoso bolo. Enojado, atirou o avental na direção dos rostos inchados das duas raparigas, que imediatamente desataram a correr, chorando ainda mais. Os seus saltos batiam contra o parquet e juntamente com os rangidos criavam uma inusitada sinfonia. As pancadas dos sapatos provocavam abalos que faziam com que todo o chão vibrasse. E mesmo quando as raparigas se sentaram no sofá de veludo do hall de entrada, tudo continuou a tremer. Os lustres verdes de vidro restolhavam no restaurante, os copos tilintavam levemente uns nos outros. Os passos das raparigas eram inocentes de tudo isto. Estela estava a tentar evitar que as panelas de inox penduradas batessem umas nas outras quando viu de relance, no reflexo de uma das panelas polidas, uma linha encarnada em torno do seu pescoço. Tateou-o. Na manga da bata branca apareceu uma mancha de sangue.
“Ajudem-me!” gritou e deixou-se cair lentamente no chão.
“Não foi nada, está tudo bem, sente-se”, acalmou-a Elbe.
A médica esgrimiu a mão à frente do rosto da rapariga.
“Elbe, por favor, tapa-me esta ferida!”
No entanto, ninguém fez nada. Elbe apenas lhe acariciou suavemente os cabelos.
“Então, façam alguma coisa! Porque é que ninguém me ajuda?!” a sua voz chiou sibilante. Nenhum dos presentes estranhou a cicatriz hedionda no seu pescoço, nem a manga ensanguentada e nem o facto de se estar a asfixiar, pelo simples facto de que ninguém via nada disso. Os tremores cessaram. Calma. A manga de Estela estava limpa, ela podia até respirar normalmente, o seu pescoço estava suave e impecável, não havia nem memória da mordida na mão de Elbe e o rosto de Schmidtt, que tinha acabado de chegar, correspondia ao aspeto comum de um senhor mediano de oitenta e nove anos.
A doutora levantou-se do chão, saiu a correr do restaurante em direção ao hall e por um momento dirigiu o seu olhar para a entrada principal. Correu pelas escadas até às galerias e escondeu-se atrás das grades ornamentadas. Sentia como as portas abertas deixavam entrar no interior um pouco do ar fresco matinal. A brisa levantou suavemente os cabelos que lhe caíam sobre os olhos. Espreitou cuidadosamente através de uma nesga entre as colunas e ornamentos.
As portas fecharam-se.
Estava ali, de pé.
Um novo hóspede.
Um antigo hóspede.
Um cliente habitual.
Joe Sagrado Colorado Chuchin.
Evidentemente, não era esse o seu nome verdadeiro.
Porém, escolhera-o bem. Se havia alguém no mundo que tinha aspeto de Joe Sagrado Colorado Chuchin, esse alguém era ele.
Traduzido por Sergio Oliveira